quarta-feira, abril 19, 2006

Cai o Pano

S. não conhecia nada a não ser a sua aldeia. Uma localidade pequena com aquele encanto que só uma terra natal pode ter. O que é nosso desdenhamos, o que não temos queremos e S. queria viajar. Uma grande cidade cheia de sons e de cores, era aquilo que mais queria e que a sua aldeizinha cinzenta nunca lhe poderia dar. Os pais, gente de poucas posses decidiu satisfazer o desejo à sua menina. Suaram muito para no seu vigésimo primeiro aniversário lhe poderem oferecer uma viagem.
S. foi sem olhar para trás. O passado fica sempre lá atrás. E assim foi nesta nova experiência. Viajou, fixou-se, aprendeu línguas, empregou-se numa multinacional, fez compras, conhecimentos e amores. Passeava vaidosa pelas ruas da cidade das luzes néon. Eram suas, tinha-as conquistado com os sapatinhos novos, a pose muito fashion e o casaquinho novo de pele.
Numa daquelas terças-feiras do costume, em que dava para esticar a hora de almoço ia ao seu restaurante favorito, no centro da cidade. Entrou como só ela sabia. "Bolas! Está cheio de gente!" Era um aniversário, detestava que o seu gourmet de eleição estivesse tão apinhado mas já que se tinha desviado tantos quilómetros do local de trabalho não ia deixar de almoçar ali. Se havia coisa que tinha aprendido era que ninguém lhe dizia que não e que ela levava sempre a sua avante. E ficou.
Finalmente chegou a hora de cantar os parabéns. Era um menino e estava rodeado pelos pais e amiguinhos de escola. Um empregado, estrangeiro sem dúvida, entregou-lhe um presente, "em nome da casa" disse ele. "Ah os pais devem ser bons clientes", pensou S. e bateu palmas embora a contragosto. Não deixou de notar contudo que o empregado tinha uma expressão diabólica. Tão cedo não voltaria, era o preço por a fazerem sentir uma cliente de segunda e contratarem novos empregados com um aspecto tão... pobre.
Sentiu algo estourar perto do ouvido quando voltava as costas. Quente. Escuro. Dor. A mesa ricamente enfeitada já não existia, eram só pedaços de madeira, estilhaços dos copos de cristal e da loiça de porcelana e... por todo o seu corpo também. Viu tudo em flashback: a aldeia branca, as casinhas de bonecas, o sol poente sobre o mar. Casa. Os pais. Rolaram lágrimas sobre o rosto ferido. A custo olhou para baixo, para o torso: sangue. Mas só conseguiu dizer: "F***-se estraguei o meu casaco novo!" Fechou os olhos.

3 comentários:

negative creep disse...

é triste quando se esquece as origens. e é triste quando o que tem significado é ignorado e o que não devia ter tanto significado é priveligiado

Luisa Seabra disse...

pessoas assim são tristes, vazias,e assim acabam as suas vidas...

Anónimo disse...

Não tenho palavras. Deixo apenas um beijo um carinho.